quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Histórias do ponto II

Nunca tinha visto um cego tão descuidado ou desajeitado. Tropeçou na quina do canteiro, depois meteu a vara, digo, bengala, na cara de uma menininha que passava pelo ponto. A mãe nitidamente viveu instantes de aflição. Estou no ponto? – perguntou o cego. Está – respondi. Não queria conversar com aquele homem, mas depois da minha deixa... Você mora aqui no Centro? – perguntou-me. Moro. Moro na rua Boaventura do Amaral – disse, em tom neutro, procurando demonstrar a minha falta de interesse em levar aquilo adiante. Ah, é? – disse ele, revirando os olhos. Tem um monte de muié gostosa nessa rua, não tem? Respondi que sim. Mas... Minha rua é como as outras do centro, nada demais. Aliás, não é bem assim. Bem em frente de casa tem uns travestis que se prostituem e dão gritinhos de quando em quando. Veja só a ironia: “um monte de muié”. O cego então começou a falar mal de um sujeito que gritava em uma espécie de megafone. Esse cara é um bosta! – disse. Lembro-me de um dia – continuou – que esse babaca do megafone levou uma surra! O cego disse isso com um prazer estranho. Ele sorria, sorria com ódio ou rancor. Enquanto o observava contando esse pequeno fato, expliquei pra mim mesmo aquele rancor pela via da cegueira. Pensei: ele deve ser assim porque não aceita ser cego. E então conclui: ele não deve ser cego de nascença.
Sempre tive esse preconceito em relação aos cegos. Para mim há os cegos revoltados (aqueles que um dia puderam enxergar) e os cegos conformados (aqueles que nunca experimentaram a visão). Aquele, do ponto de ônibus, certamente se enquadrava na classe dos revoltados.
É ridículo... É ridículo como nós simplificamos o mundo inventando categorias, não é? É... Mas isso tem e teve seu valor. Permitiu-me ver que aquele descuido, aquele prazer estranho, aquele ódio contra o megafone era a resposta de um roubo, de uma perda. A perda da visão. Sim! Aquele não era um cego de nascença!

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